A filosofia como ferramenta de desconstrução do preconceito

24 de abril de 2021 1 Por Cris Danois

“Miséria e injustiça acabarão por desaparecer se for permitido à pura luz da razão penetrar nas cavernas escuras da ignorância, da superstição e do ódio.” (D. Erasmus)

“Não há maior miséria que viver na ignorância”. (Terencio)

Definindo filosofia e preconceito:

Filosofia – termo amplo, definido ao longo de dois milênios desde o seu surgimento sistematizado na Grécia Antiga, a partir do qual podem derivar formas legítimas de conhecimento.

Se afirmarmos que todo pensamento ou ato/exercício de pensar é Filosofia, então nenhum pensamento é Filosofia, pois se algo é tudo, esse mesmo algo é nada, visto que tudo não é definição de coisa alguma, apenas um pronome indefinido usado como um nome (adjetivo/substantivo).

É comum, no Brasil hoje, afirmar que toda a Literatura Científica ou não produzida pelo homem é uma forma de Filosofia. Mas isso é mais que uma Ideologia, que é um conjunto de ideias específicas que servem a um determinado fim, é uma impropriedade teórica. Assim, tem grupos que dizem que Antropologia é filosofia, que Religião é filosofia e até mesmo que ocultismo e cultos de cunho religioso é filosofia. No máximo, poderíamos identificar uma filosofia ou mesmo, um paradigma de ideias que nem sempre constituem uma Filosofia, por trás destas disciplinas, quando não encontramos parte de ideias, idiossincrasias, ideologias com finalidades específicas. Todo discurso que visa um fim fora de si mesmo ou do conhecimento verdadeiro está calcado em sofismas e cheio de falácias. Estes discursos são apelativos, ideológicos, parciais, políticos, etc.

Temos que o surgimento da Filosofia, como entendemos, deu-se na Grécia Antiga com Sócrates, ainda que os pré-socráticos, ou seja, pensadores que o antecederam, tenham tentado explicar a origem do mundo/do homem e a relação entre estes dois elementos. Através de Platão (discípulo dele) e de Aristóteles (discípulo deste último), pudemos conhecer o legado de Sócrates, seu método de pensar e investigar e as conclusões racionais que deram uma boa base para desenvolvimentos posteriores do conhecimento humano.

Logo, a Filosofia tem como sua origem pensar o homem e o mundo/universo, tanto sua origem como o seu estar/expansão neste mesmo mundo. Uma espécie de Cosmogênese/Cosmologia e Antropogênese/Antropologia e afins. Entretanto, estes dois exercícios já eram exercidos pelas religiões em descrições míticas (diferente de místicas). A Filosofia já conseguiu mostrar/comprovar ou expor/desenvolver através de sistemas, toda essa Ontologia e não apenas a Ontologia, a Ética/Política, a Estética e a Lógica também.

Dizer que a Filosofia é o amor pela sabedoria é expressar uma frase de efeito, típica de livros didáticos simplistas. Se propusermos a definição: “ser amigo do conhecimento” – esta definição suscita uma participação maior de quem faz o primeiro contato com essa área do conhecimento humano, mas a definição de Filosofia é tão difícil como qualquer definição do Ser e vem sendo revelada ao longo do próprio exercício da mesma. Podemos definir também a partir da negação dialética, mas deixemos isso para outra ocasião.

“Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os fatos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos fatos, que pode haver lógica.” (Fernando Pessoa)

Podemos afirmar que a Filosofia é a origem de todo conhecimento sistematizado/organizado produzido pelo homem. Antes da Filosofia como conhecemos, o conhecimento/ou a explicação do homem e das coisas, bem como do mundo, foi expresso literariamente, através de imagens, metáforas, parábolas ou analogias, às vezes de forma dogmática e fechada, pouco racional ou explícita, outras vezes não.

A base da Filosofia está na Lógica, ou seja, na ciência do discurso, da palavra. A ideia de que o ser se expressa pela palavra/linguagem é mais que estrutural, é primordial.  A consciência está no cerne do logus/palavra. Sem o logos não há consciência de si, nem do outro, nem do mundo, muito menos autoconsciência (no sentido hegeliano da palavra). A lógica é o estudo das proposições, dos argumentos, das conclusões e suas validades através do raciocínio dedutivo ou dialético. Sendo assim, difícil construir/ter uma consciência sem linguagem, pelo menos até onde entendemos a vida aqui e agora.

 Sem a Lógica, nenhuma outra parte da Filosofia/Ciência/Conhecimento poderia existir com racionalidade. Estabelecida a primeira ferramenta do conhecimento, a Filosofia se divide em partes específicas que permite o investigar específico de cada elemento envolvido na questão homem/mundo.

A lógica se relaciona muito próximo da Ontologia, que é ciência do ser, que tem como base a pergunta: O que é? Numa tentativa de definição do ser em si do homem e de todas as coisas que o cerca, desenvolve-se todo um sistema filosófico. Sem isso não poderíamos ter a Teoria do Conhecimento, nem mesmo a Fenomenologia, duas outras disciplinas que se desenvolvem com a Lógica e a Ontologia.

Ainda vamos encontrar a Ética e a Estética. Na primeira encontramos a Política como ciência da polis/cidade ligada à Sociologia e à História, enquanto, na segunda incluímos as Artes e as religiões, por serem mais subjetivas e serem uma expressão do gosto pessoal (embora, desde há muito tempo, elas tenham migrado para o campo da Política, deixando seu papel principal como consoladora para exercer domínio/poder/controle junto à Política e ao Estado).

A Filosofia da natureza (cf. Aristóteles) deu origem à Física e demais ciências que estudam o mundo físico – Biologia, Química e todas as derivadas dessas – Medicina, Veterinária, Botânica, Mineralogia, Antropologia, Geologia e tantas outras.

A Metafísica vem então suprir o campo do conhecimento das coisas que estão além do mundo físico, observável e definido pelos cinco sentidos humanos, seja através da Fenomenologia, Empirismo ou não. Aí encontramos a Psicologia, a Parapsicologia e ciências afins.

“O bom senso e um pouco de lógica nos advertem que, se as ideias têm consequências, então as más ideias têm más consequências. E, ainda mais óbvio: más ideias, escritas em livros (e repetidas por professores e mestres), tornam-se mais duráveis, infectam gerações e mais gerações e ampliam a miséria do mundo.” (Benjamin Wiker)

Não pretendo aqui explanar uma explicação exaustiva sobre o que é Filosofia, teria que defender mais que uma tese e não conseguiria. A proposta é partir de uma base para o desenvolvimento que vem a seguir, nesta crônica. Continuemos, a partir da proposição colocada acima que é ‘através da Filosofia, desconstruir o preconceito’.

Preconceito – um conceito antecipado, pré-concebido e aceito por um grupo ou pelo senso-comum, sem investigação nem comprovação racional/científica.

Preconceito é uma forma/espécie de falácia que em resumo é uma falsa argumentação (mentira). Falácia é um argumento que permite crer que seja aquilo que não é – sofisma (ilusionismo filosófico). Os sofismas podem se relacionar com o modo de falar (modo discentes) ou no que se fala (extra discente).

“O preconceito é a única defesa dos pobres de espírito.” (anônimo)

“É mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo.” (Einstein)

Infelizmente, numa sociedade democrática do século XXI, onde a ciência está bastante desenvolvida em muitas direções, o preconceito permanece e está vigente dentro das instituições básicas do desenvolvimento do ser – começando na família e na escola e terminando em outras mais amplas socialmente – repartições públicas, empresas particulares, clubes, igrejas, partidos políticos, entre outras.

Para sermos didáticos e justificarmos o título de nossa crônica – a Filosofia como ferramenta de desconstrução do preconceito – escolhemos algumas frases comuns dentro do âmbito escolar, infelizmente do corpo docente, que mais prejudicam que auxiliam o processo didático e o desenvolvimento de pessoas (alunos) saudáveis e racionais, ajudando numa formação no sentido contrário ao esperado; no sentido negativo do desenvolvimento democrático e humanista, além de libertário.

Infelizmente, nosso sistema de ensino público está calcado em ideologias massificantes, generalizantes, redutoras com fins estatísticos e financeiros (além de outros fins menos explícitos, mas que podem ser subentendidos). Toda reforma de ensino foi reducionista, desde a ditadura militar. Se considerarmos o movimento do conhecimento no mundo, isso seria, no mínimo, um contrassenso. A fundamentação do reducionismo é puro preconceito – racial, social, religioso e de gênero.

“Todo preconceito é fruto da burrice, da ignorância e qualquer atividade cultural contra o preconceito é válida.” (Paulo Autran)

Retiramos algumas ‘pérolas’ dos nossos professores, a título de alerta e chamada para a responsabilidade para uma crítica construtiva a partir de um estudo aprofundado, através da Filosofia, que faremos em outra postagem.

“Vocês são um nada. Vocês são mão de obra barata. Já sofrem da síndrome da segunda-feira e vão continuar até o fim de suas vidas contando moedas para comprar qualquer coisa.”

“De 100 alunos que chegam a mim, eu foco apenas em um, pois só um vale a pena ensinar. Amanhã este será o patrão e vocês não passaram de reles empregados.”

“Se vocês não estudarem serão simples faxineiras e pedreiros, pobres e mal pagos!” (Isso foi dito numa sala de uma escola pública, numa região de baixa renda, onde a maioria é filho de pedreiro e faxineira).

“Aluno/aluna que usa alargador tem que pegar uma arma e dar um tiro na cabeça para ver se alarga o cérebro!”

“Meninos que crescem em famílias sem pai, são gay ou serão.”

 “Não posso aceitar esse desenho porque é de 1ª série, infantil demais!” (Numa aula de artes do ensino médio)

 “Toda literatura brasileira é chata e difícil, Machado de Assis então, superdifícil.” (Em salas de literatura e língua).

O mesmo (literatura difícil) foi dito em relação a Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral e outros. “Bom mesmo são os best-sellers, porque se são best-sellers é porque são bons!”

Dentro de uma faculdade, num curso de Letras: “Toda poesia é lixo, não serve para nada. Bom ainda é conto ou romance – tem algo a dizer.”

“Li e não entendi nada. Não sei por que esses escritores inventam de escrever complicado, sem pontuação, sem parágrafo… será que não sabem escrever?” (curso de graduação em Letras, sobre romances que apresentam fluxo de consciência).

“Você não precisa saber nada… é só ficar quieto que você passa! Não vai aprender mesmo, nem precisa; você só precisa do diploma para mostrar.”

“A escola não é o espaço do saber, é um espaço de relacionamento e integração social.”

“Quem não acredita em Deus é burro e devia morrer pra ir logo para o inferno!”

“Quem não lê a Bíblia já está condenado e não vai prosperar na vida porque Deus não vai ajudar; e sem Jesus o ‘cara’ tá no buraco!”

Estas são algumas das frases mais comuns, coletadas em conselhos de classe, espaços de recreio e ditas por alunos ofendidos e com testemunhas. Colhi outras que são indignas demais, que para mim, vai para além do preconceito, relativas à condição feminina, deficiente ou de gênero ou raça (estas infelizmente são mais localizadas, dependendo da região).

Como poderíamos combater isso? Não a ferro e fogo, nem coibindo, nem com leis coercitivas. Somente o esclarecimento, a lógica do conhecimento que dá a base da consciência pode fazer isso com efetividade.

Dentro de toda a escola deveria se dar Lógica, lógica pura mesmo, linear, mostrando os mecanismos de raciocínio e estruturação dos discursos, através dos silogismos, sofismas e falácias. Complementar com a lógica dialética e desconstruir cada proposição dessas, através da definição elucidativa, do simples ao complexo num processo indutivo/dedutivo e calcado em exemplificações extensas.

Difícil? Não. Nem isso, nem a Literatura brasileira, se houverem professores de língua bem formados, bem intencionados e bem remunerados e valorizados também. É trabalhoso tanto quando o desenvolvimento de um problema de Física, de Cálculo, de Descritiva ou outro.

Em outra oportunidade, farei a desconstrução de cada proposição. Por ora, termino com uma imagem:

A vida nesta Terra é como andar por uma grande Floresta Tropical. Há diversas formas de vida: árvores de diversos tamanhos de altura e expansão – de 40/60 m de altura às rasteiras, flores variadas, frutos diferentes, comestíveis ou não, trepadeiras aéreas ou não, cipós, musgos, plantas carnívoras, arbustos, insetos, animais de grande porte do tipo mamíferos ou primatas, até mínimos ou quase invisíveis. Enfim, um rico ecossistema, uma rede de interações quase indescritível e inconcebível num primeiro momento ou sem uma atenção mais acurada, lenta e cuidadosa. Quando passeio por uma parte desta floresta, posso ver lindas espécies de animal ou vegetal, entre outras, não tão bonitas ou outras que não despertam meu interesse, ou que nem consigo notar. Mas, ainda que eu escolha as belas orquídeas selvagens, as gigantes samambaias, as incríveis borboletas, as grandes árvores carboníferas, eu não preciso discriminar nem devo querer eliminar o que no meu parco e curto julgamento ou gosto eu afirmo, afirmando que são feias ou que não gosto. Tudo fica ali, eu aprecio, desfruto e passo, porque compreendo a importância e o lugar/função de tudo, de cada parte no todo e deste todo. Assim é a nossa vida em sociedade – cada um faz parte de um grupo ou espécie de acordo com uma série de fatores que, também, quase fogem a nossa apreciação e consideração. E exatamente por isso, devemos apreciar, observar e absorver o que nos interessa e manter todo o resto, agindo de acordo com a consciência do nosso conhecimento e ignorância que sempre andam juntos.

“A floresta era a casa de muitos tipos diferentes de árvores e espécies nativas da região, incluindo as árvores cinzas, vidoeiro, castanha, abeto, linden, carvalho, rowan, e salgueiro, algumas árvores que eram ao contrário de todas as outras na Terra Média. Muitas das árvores eram muito velhas e algumas foram penduradas com as costas dos troncos como galhos arrastando-se.” (Tolkien in Senhor dos Anéis)