TUDO É NARRATIVA

28 de maio de 2024 0 Por Cris Danois

Da virada do século para cá, o mundo que precisava de (re)pensar o conceito de Ética e aplicá-la, que necessitava de desenvolver a consciência individual e coletiva, tornou-se o palco de uma guerra inusitada – uma guerra de narrativas. Hoje, o mote principal é: tudo é narrativa! Crenças são narrativas que se repetem demais; preconceito é narrativa aprendida na sociedade; sexo e gênero são narrativas na medida que também não são naturais nem factuais e sim, segundo a nova ideologia, uma narrativa imposta e assumida ou adquirida. Ora, se tudo é narrativa, nada é narrativa, pois essa premissa já engloba uma tautologia que impede definição, delineamento ou análise, posto que para se realizar qualquer uma dessas ações é preciso lançar mão de narrativas pelo motivo obvio de que a atividade mental é realizada com palavras/sintagmas por excelência.

Com a diminuição dos conteúdos escolares em geral, especialmente os que desenvolvem as inteligências com a finalidade de se inaugurar um mundo novo regido por IAs, as interações pessoais de todo tipo estão comprometidas. As inteligências interpessoal e intrapessoal dependem totalmente das palavras, do pensamento estruturado e de preferência na língua materna que hoje, em todos os países está em crise. A língua standard (padrão) para se estabelecer um horizonte de comunicação possível entre as diferentes formas de pensar e agir no mundo está sendo implodida, não explodida, pois não vem de fora este movimento e sim de dentro, do próprio falante.

Sendo assim, o mundo e todas as suas camadas e inferências factuais e subjetivas passam à categoria da construção cultural ou narrativa, posto que para a ideologia vigente, a cultura se constrói com o discurso. Mas esquecem que a esfera da Arte pura, sem padrão ideológico, sem restrição ou censura, não necessita da narrativa restritiva e normativa nos moldes do politicamente correto e pode ser apreciada na sua imagética puramente estética que satisfaz sem dizer. Mas a Arte também foi reduzida e o policiamento é total, pois não escapam nem os clássicos de uma releitura estreita e, muitas vezes, burra, cobrando de um texto do século XIX, ou do século XII ou ainda da Antiguidade, discursos que retratem a ideologia atual nos seus cerceamentos, rótulos e micro definições.

E, se tudo é narrativa, cada ser humano tem a sua; daí, entramos na esfera do solepsismo e isolamento social, com agravamento de distúrbios mentais sérios que tangenciam o autismo e a esquizofrenia, além de outras patologias. E onde foi parar a proposta interativa do grande sociólogo Jürgen Habermas que defendia a construção de um horizonte de comunicação para um agir social abrangente e verdadeiramente inclusivo? Para se obter esse horizonte o primeiro ponto é separar o público do privado, pois o agir comunicativo diz respeito à sociedade e não à intimidade, onde temos a esfera do privado. Segundo ponto, é preciso estimular o respeito e a tolerância que se obtém ao desenvolver a arte de ouvir isento de preconceitos, pressuposições, julgamentos e etc. Sem isso, a convivência pacífica jamais será possível. A estratégia de imposição, censura e até criminalização com punições e cancelamentos é uma violência ao Estado Democrático de Direito.

Terceiro ponto, criar um horizonte de comunicação e tolerância das diversas visões de mundo não é impor gostos. O gosto é da esfera da Estética e da individualidade como direito natural de todo ser humano. Se um grupo de pessoas gostam de comer inseto, que comam. Se outro grupo gosta de comer boi, que comam e está tudo bem. E se um terceiro grupo não como bicho algum, também deve ser respeitado, pois é da esfera privada, particular, gosto pessoal, familiar ou mesmo de um grupo específico e a Ciência não tem consenso algum sobre quase nada, pois as narrativas científicas nos diversos manuais e papers são contraditórias, quanto a quase tudo que se apregoa com a máxima: ‘é científico”!

Quarto ponto, diz respeito à imposição das minorias sobre à maioria – pois assim é dito. As minorias devem estar representadas nas instituições de poder e decisão para ajudar a dialogar no intuito da inclusão e no exercício dos seus direitos constitucionais e naturais, não no comando total. Entretanto, impor com censura prévia ou súbita, cancelar e perseguir ou ainda, criminalizar de forma inafiançável é abrir precedentes para outras práticas marginais, que também terão seus discursos considerados como justos e cabíveis.

Para terminar, coloco minha análise um pouco mais afiada. Esse sistema foi construído há muito tempo e vêm se mantendo por coerção de períodos em períodos desde o século IV d.c. e hoje composto de política-religião-ciência oficial e mídia, incluindo agência de notícias e entretenimento em geral. As universidades com seus professores e intelectuais nunca defenderam uma unanimidade, uma só visão de mundo, um só discurso, prezando os debates e discussões, às vezes até acaloradas, mas todas respeitosas e argumentadas, até o século XIX, quando um filósofo (Schopenhauer) se deixou envenenar por despeito e inveja e criou um manual de falácia (Os 38 estratagemas) com a finalidade de desacreditar e destruir o seu objeto maligno (Hegel).

Então, formou-se uma classe de invejosos detratores sem razão e se infiltraram dentro destas instituições de liberdade de pensamento e expressão – narrativa ou não – e destruíram por dentro num verdadeiro golpe, do mesmo tipo que destruiu Tróia. Hoje, estas instituições não professam nem incentivam a diversidade, ao contrário, apregoam uma fala única, um só discurso, uma univocidade nociva para a expressão individual, social, artística e progressista, pois sem crítica e diálogo, não há crescimento, nem desenvolvimento, e… Estagnamos. Esse fenômeno explodiu, saiu das universidades, ganhou as ruas e está disseminado nas redes sociais que nunca foram privadas, pois o que este sistema mais persegue e tem repulsa é ao particular, o indivíduo.

Poderia alongar mais esta postagem, visto que daria mais uma tese longa com argumentos, documentos e provas. Mas, outro fenômeno muito comum hoje em dia é o de dizer (mais uma narrativa) que “não tenho tempo para ler textão, livrão, manual” ou mesmo outros livros, hoje em dia classificados segundo a largura e não mais por gênero ou importância. Portanto, deixo sugestões de leituras, mas é preciso ler antigas linhas, tabuinhas e outras histórias que foram suprimidas para saber quem começou, porque começou e quando começou essa “guerra” com esse desejo insano de dominação do mundo.

Sugestões de livros para se ter uma ideia da polêmica hoje: Guerra cultural de Stephen R. C. Hicks; Guerra de narrativas de Luciano Trigo; Crise na narração de  Byung-Chul Han e Daniel Peluso Guilhermino; As origens das guerras culturais de Alan dos Santos; Economia narrativa de Robert J. Shiller; Memórias narrativas de José Carlos Sebe B. Meihy e Leandro Seawright.

Sugestão de livros para entender essa polêmica e ajudar a pensar e avaliar este panorama: A cabeça bem feita de Edgar Morin; A economia das trocas simbólicas de Pierre Bourdieu; A Filosofia Contemporânea – Introdução Crítica de  por Wolfgang Stegmüller; Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas e Teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.