Sobre a filosofia no/do Brasil ou dos filósofos brasileiros da atualidade
20 de agosto de 2021A primeira pergunta que me vem à cabeça é: filosofia brasileira, o que é isso? Sem pensar do que se trata este sintagma, não podemos falar com precisão do segundo: filósofos brasileiros. Seriam filósofos que moram no Brasil, que nasceram no Brasil? O que é ser filósofo num país sem tradição filosófica? O que é filósofo na concepção nacional, não linguística, mas simplesmente a semântica social e midiática dessa profissão (?), categoria (?), título?
Primeiro temos que pensar o que é Filosofia, pois sem um conceito o mais preciso possível, não podemos dizer se existe ou não uma filosofia onde quer que estejam dizendo que há. A própria Filosofia vem tentando definir-se ao longo de séculos, desde o seu surgimento no ocidente, na Grécia. E os pensamentos anteriores, eram filosofias também? Segundo o modelo que surgiu de racionalidade e metodologia, não. A Filosofia se distingue do pensamento religioso, mitológico e ideológico por princípio. Logo, o que chamamos de Filosofia tem metodologia específica – poderíamos dizer que é uma forma de pensar o homem, o mundo e as relações do homem no mundo, bem como suas projeções, comportamentos e atuações.
Mas qual é o objeto mesmo da Filosofia? Segundo Sócrates é a verdade – a verdade das coisas, de tudo – homem, mundo, relações, circunstâncias… enfim, ele morreu defendendo exatamente esta premissa em detrimento de uma corrente paralela que surgia simultaneamente à filosofia socrática, com os sofistas e seus sofismas. De Sócrates a Hegel e para além desse filósofo, passando por Heidegger, Habermas e Edgar Morin (e muitos outros) a Filosofia vem ampliando não apenas sua forma de pensar, sua metodologia e suas categorias. Ela vem ampliando o vocabulário para adequar o pensamento a suas descobertas, numa constante tentativa de ampliar o conhecimento do homem e do mundo e poder comunicar isso a todos de forma clara, precisa e simples (tanto quanto possível).
Entretanto, ainda que não pudéssemos dizer exatamente o que é a Filosofia, podemos, utilizando o próprio método filosófico, dizer o que não é Filosofia. Por isso, podemos afirmar que nem todo exercício do pensamento é Filosofia, pois não é toda a atividade mental que é tida como tal. Então, temos um segundo problema: o que é pensar? Alguns dicionários definem como: submeter (algo) ao processo de raciocínio lógico; exercer a capacidade de julgamento, dedução ou concepção ou ainda que ato de pensar inclui algo que vai além da capacidade de desenvolver metodologias que conduzem o pensamento através de habilidades que proporcionam a investigação filosófica. É, sobretudo, experimentar a vida através de construções e desconstruções de conceitos. Então, podemos concluir que o ato de pensar é mais abrangente que a Filosofia, pois pensar inclui desde calcular, raciocinar, especular, intuir, investigar, sonhar, imaginar, refletir e tantas outras ações abstratas na sua atividade primeira, mas não totalmente, pois algumas derivam em ações concretas.
Ora, se o ato de pensar, o pensamento, é algo de maior abrangência, nem toda ação de pensar é Filosofia, visto que esta possui uma especificidade. Quando refletimos, comentamos, julgamos, condenamos, conversamos sobre as circunstâncias do mundo que nos envolve, ou mesmo quando falamos sobre nós mesmos ou sobre coisas sobrenaturais, enfim, sobre tudo que consigo conceber e experimentar, não estou filosofando no sentido próprio do termo, não sou filósofo nem estou “fazendo” Filosofia. Estou apenas sendo um ser humano no mundo com sua capacidade de pensar a mim mesmo e a todos, além de tudo à minha volta em qualquer tempo, espaço e dimensão.
Então, a Filosofia se distingue por uma limitação de método e objeto, e tem um “corpo” estruturado que podemos chamar de sistema. Num primeiro momento, a Filosofia se distingue e se diferencia do senso-comum e até do bom senso. Igualmente, a Filosofia se diferencia de ideologia (explicaremos este tópico mais adiante). O filósofo propriamente dito tem um método de abordagem para pensar e definir/determinar o seu objeto como toda Ciência. Aliás, a Ciência surgiu de dentro da Filosofia; sem esta, estaríamos ainda com as lendas, mitologias e explicações metafóricas sobre o surgimento dos homens, da terra, do cosmo e de tudo. A Filosofia não lança mão dos saberes dessas outras ciências, ao contrário, a história do desenvolvimento do pensamento científico nos mostra o quanto a Ciência bebeu e bebe no pensamento filosófico, pois ao determinar seu objeto, sua metodologia, seus critérios e tudo mais, as ciências se valem do método filosófico de lógica e raciocínio. Daí, concluímos temporariamente, que o filósofo é o indivíduo que consegue pensar sobre tudo, investigar e que não necessariamente conclui ou fecha um conhecimento, pois é uma característica essencial do saber filosófico o ser investigativo.
O conceito de ideologia também já foi bastante discutido, analisado e buscou-se definições. A origem do termo ocorreu com Destutt de Tracy, que criou a palavra e lhe deu o primeiro de seus significados: ciência das ideias. Posteriormente, quando Napoleão chamou De Tracy e seus seguidores de “ideólogos” no sentido de “deformadores da realidade”, percebeu-se que esta palavra tinha um outro sentido e que este não era positivo. No entanto, os pensadores da Antiguidade Clássica e da Idade Média já entendiam ideologia como o conjunto de ideias e opiniões de uma sociedade. Logo, um conjunto de ideias e opiniões não é Filosofia!
No final do século XIX, com Karl Marx, o conceito de ideologia foi retomado (talvez pela leitura deste de anotações e escritos de Napoleão) com o sentido pejorativo, pois para ele, a ideologia age mascarando a realidade, por ser opinativa e parcial. A ideologia tem a característica de ser um conjunto de ideias que se orientam para um fim específico, ou seja, para ações sociais e podem pertencer a um indivíduo ou grupo de indivíduos numa sociedade, que detém ou não o poder naquele momento. A ideologia age por convencimento – persuasão ou dissuasão e não visa conscientização ou investigação exaustiva e global, pois ela não se preocupa com a verdade (algumas ideologias afirmam que a verdade não existe e que o que identificamos como verdade, não passa de realidade, confundindo os termos – “não há uma verdade e sim, verdades porque há realidades”). Sendo, portanto, seu objeto uma realidade circunstancial e parcial, a sua atuação visa um fim especifico e não lança mão de métodos específicos ou definidos a priori. Traz no seu bojo, a imprecisão e a parcialidade que vemos nas diversas opiniões que campeiam pelo mundo civilizado.
Mesmo os marxistas que vieram depois não entram num acordo, havendo quem considere a ideologia como boa, outros como má e deformante e há, ainda, os que dizem que temos que cultivar a ideologia para a tomada de poder e a manutenção do mesmo, no estilo de Gramisc. Ora, se o seu objeto e finalidade é um dado momento presente, a Filosofia está distante disso, pois ela se ocupa da verdade, do ser, da definição do que é de cada coisa seja homem, ação ou mundo, histórica ou temporalmente. A Filosofia visa a ampliação da linguagem através da Lógica, a fim de melhor expressar as reflexões sobre toda a sua atividade investigativa. As ideologias não investigam, elas (pro)põem, dizem, afirmam, apresentam um discurso pronto e suas premissas são geralmente inquestionáveis, bem como o seu próprio objeto.
As ideologias, tanto quanto as doutrinas (sejam de que caráter for) reduzem, determinam, induzem, impõem, ou seja, visam obter um comportamento específico, mas não somente um agir, um pensar e sentir determinado, que se espelha na expressão linguística livre, bem como em toda a expressão artística. Atualmente, as ideologias têm ido mais longe, atuando socialmente através de redes sociais que são alimentadas pelas maiores mídias, cancelando pessoas, sejam artistas, filósofos ou não, obras de arte, inclusive livros, empresas e instituições, criando dialetos, gírias que se elevam à categoria de linguagem, ao mesmo tempo que censuram o idioma, reinterpretando seus significados ou mesmo atribuindo significados específicos, que não estão relacionados ao signo em si, nem mesmo aos sintagmas. A pretexto de se pensar de outra forma, reduzem, anulam, discriminam e cultivam uma ação já muito condenada pela História – o aniquilamento do que veio antes, a caça às bruxas, a censura, etc.
A pergunta que deriva desta reflexão neste artigo é: por que agora, depois de tanto se rebaixar a Filosofia à condição de atividade/disciplina/curso alienadora e até mesmo própria de loucos ou nefelibatas, surge um conjunto de pessoas, endossados pela mídia, querendo se apresentar como filósofo? Por que ser filósofo hoje, mesmo sem ter estudado ou se dedicado à Filosofia propriamente dita ou ao exercício do pensar filosófico? Por que isso foi elevado a categoria de ser importante, atual, engajado, inteligente, respeitável? Quando foi que a Filosofia foi valorizada e respeitada, visto que não vejo ainda nenhuma ação concreta derivativa desse movimento – a não ser, esta propaganda, esse movimento apelativo e enaltecedor de alguns indivíduos, das mais variadas áreas não só do conhecimento, mas do simples estar no mundo – modificou currículos escolares ou mercado editorial?
Ao contrário, o número de cursos diminui em todo país e o número de ingressos nos cursos que restam também. E a disciplina obrigatória no ensino fundamental e médio – dependendo do momento e da ideologia vigente no governo – não tem uma ementa estruturada, uma determinação de conteúdo básico, ficando, quando existe, ao critério do professor que não precisa ser formado em Filosofia para ministrar aulas desta disciplina, muitas vezes se confundindo com ensino religioso ou prática política. Atualmente, ela entrou nos currículos como obrigatória (desde 2008) junto a outras igualmente sempre banidas, mas a carência de professores formados estabeleceu outro problema que foi solucionado, parcialmente com criação de licenciaturas relâmpagos para o exercício do magistério apenas. Esta seria outra questão para se refletir e tentar esclarecer pontos obscuros e suas implicações na formação de gerações e de ações sociais.
Mas há um fenômeno a ser considerado: desde há muito tempo neste país, apresentar-se como filósofo, mesmo sem o ser, era ser considerado uma pessoa culta, inteligente e até mesmo erudita e muitos se encantavam com o discurso, ainda que não entendessem. Há contos de Machado de Assis que revelam bem esse tipo de personagem. Mas, creio que o hábito permanece para além da evolução da literatura brasileira. A Filosofia teve sempre uma peja de inutilidade. Dizer que a escolha vocacional de um homem ou mesmo mulher era para cursar Filosofia e ser um filósofo não era apenas motivo de chacota. A crítica vinha de diversos níveis e de diversas formas, desde o “o quê você vai fazer depois com isso para se manter ou ganhar dinheiro?” ou “você perdeu a noção?” e outras que cobravam não apenas a utilidade da escolha, mas do uso do tempo desta pessoa. Alguns argumentavam com a desculpa de fazer apenas uma licenciatura, ao que também sempre foi rebatido, visto que esta disciplina sempre foi a mais instável nos currículos brasileiros.
Dentro da área de humanas há muitas disciplinas que não se mencionam, que não são divulgadas pela mídia e que não tem essa aura de importante. Derivadas da Filosofia e próprias para pensar o real imediato, é como se não existissem, e são igualmente importantes e específicas que poderiam juntas dialogar ao pensar a realidade brasileira. São elas: a Sociologia, a Antropologia – cultural ou linguística, a Ciência Política, a História, a Geografia, a Psicologia Social, a Linguística e mesmo outras, como o Direito ou a Comunicação social para citar apenas duas.
Com todo esse quadro, o que vemos é que, de uma década para cá, começaram a aparecer todo tipo de pessoa com formação em qualquer uma das áreas acima citadas, ou mesmo sem nenhuma formação e se apresentar como filósofo. Então surgiram os diversos tipos de filósofos: o sociólogo filósofo, o comunicador filósofo, o historiador filósofo, o político filósofo, o educador filósofo, o astrólogo filósofo e mais recentemente, temos os tipos mais bizarros: youtubers filósofos, influencers filósofos, atriz pornô filósofa, futebolista filósofo, diretor de filmes pornográficos filósofo, pastor de seitas evangélicas filósofo, apresentador de reality show filósofo e assim por diante. Diante deste fato, podemos concluir que filósofo virou um adjetivo que se agrega a uma outra atividade de formação, porém não consigo atinar com o significado desse adjetivo. Seria pensador? Uma pessoa que pensa de forma diferente do pensar comum? Ou somos todos filósofos porque pensamos nossas vidas e realidades? Mas, seguindo o princípio da lógica, se todos são filósofos, nenhum verdadeiramente é, pois isso se anula ou o ser filósofo se iguala a categoria de ser mortal na afirmação – todo homem é mortal.
É preciso ressaltar, no entanto, que isso não se dá de qualquer maneira. Não é que as pessoas foram se apresentando assim e os outros foram na mesma onda, e sim, que a mídia em geral, assim foi classificando para dar um peso às discussões promovidas por ela e mesmo às pessoas por ela escolhidas para falar, afirmar e dizer como se deve pensar, sentir e agir hoje, segundo o que é posto sobre a realidade brasileira ou contemporânea. Outro ponto importante a ressaltar é que no pensar e falar desses “filósofos” há uma condenação do pensamento anterior como se este pudesse ser desconectado do contexto histórico temporal. Esta postura leva a uma ação perniciosa em qualquer sociedade, somente assistida em períodos de terror/totalitarismo/controle, que é o cancelamento, banimento de pensares e falares outros que não os que eles estão propondo, como se com essa atitude, pudesse se levar a uma consciência, a uma reflexão acerca do que se está propondo.
A Filosofia sempre primou pela ampliação do pensamento, pois quanto mais conheço sobre mim mesmo e sobre o mundo, mais liberdade de pensar, sentir e agir tenho, visando um progresso, evolução possível nas diversas áreas do existir humano. A linguagem se ampliou e nunca se reduziu a dialetos ou gírias de pequenos grupos. A Filosofia nunca determinou comportamentos – esta prática veio de homens não filósofos, a partir de políticas, igrejas ou outras instituições de poder no mundo, como hoje vemos a ciência e a mídia em geral ocupar.
Onde podemos chegar com toda essa reflexão: a nenhum lugar, mas a alguns pontos que podem ajudar a esclarecer esse fenômeno e até mesmo pensar o que vem a ser uma filosofia brasileira. Seria uma espécie de Filosofia? Seria um modo de fazer Filosofia à brasileira? Seria um pensar de quem nasceu neste país ou outra coisa? Por que negar a base do pensar filosófico, identificando como eurocêntrico e por isso ruim se somos parte disso? Fomos “descobertos”, colonizados e formados pelo pensamento europeu – com pouca Filosofia, é verdade – e temos na nossa maneira de ser, na nossa formação, o pensar, o sentir e o agir dos povos indígenas que aqui já estavam e de uma parte do pensar africano, além de outros pensares que também contribuíram na construção do homem e da realidade brasileira.
Não consigo ver uma Filosofia eurocêntrica discriminatória, mas sim, vejo políticas sociais, legislações e outras práticas que nada tem a ver com a Filosofia e sim com interpretações parciais e leituras erradas de alguns filósofos. Sem a Filosofia, sem o movimento inicial dos gregos, não estaríamos aqui discutindo tudo isso, com método, com lógica, com critérios. Talvez estivéssemos apenas nos digladiando e matando (cancelando) mutuamente. Da mesma maneira que não posso dizer que há uma Filosofia brasileira que se oponha à Filosofia original, seja de que continente for. Somos uma continuidade se quisermos ser. A literatura no Brasil, ganhou ares de literatura brasileira após a independência, mas ela é uma evolução da literatura portuguesa além mar que tem características próprias: maneira de escrever, visão de mundo, motivação, estilo, enfim, tudo que caracteriza uma literatura que é diferente de um discurso jornalístico ou histórico ou informativo ou científico. Mas não precisamos cancelar a literatura portuguesa por isso. A leitura de ambas só enriquece e mostra os caminhos tomados por cada autor, lugar, época e assim por diante.
Não aprovo os qualificativos após o substantivo Filosofia: negra, feminista, católica, socialista, branca ou outra qualquer. Isso não agrega, só divide e afasta. Essa atitude não é filosófica nem ética, é política e ideológica no mau sentido e em nada ajuda ao desenvolvimento de um pensamento autóctone mais abrangente. Esses rótulos são estanques, limitados e não dão conta do todo, nem mesmo do objeto a que se propõem pensar e investigar. A característica essencial da Filosofia é o livre-pensar, a liberdade de investigar através mesmo da negação antes da afirmação, para se chegar à verdade, pois apenas ela liberta e deixa o existir mais leve.