As diversas ditaduras
3 de dezembro de 2020
Coisa estranha que me deu hoje a tomar café na varanda, vendo o por do sol e sentindo o vento frio da tarde de uma primavera mal começada… E meditando neste momento de realidade quase poética, conclui, entre dores e pesares, que eu até que não achava ruim de todo o tempo da censura, das repressões, da tal malfadada e maldita ditadura porque, no resumo de tudo, tínhamos mais paz e liberdade! Sei que hoje muita gente vai esbravejar contra esta frase, me condenar, me censurar, me classificar, mas é fato e não creio que seja por conta da idade, mas de uma vivência/evidência real.
Eu mesma lutei contra a ditadura porque, sim, reconheço que sempre há excessos nestes sistemas, mas criávamos expressões, jeitos e maneiras de dizer o que queríamos, de criticar, até de xingar ou de apoiar o que quer que fosse. Metáforas eram criadas e entendidas por todos, todo o tempo. Analogias, metonímias, comparações, eufemismos naturais da linguagem do povo. E mantínhamos a ternura e a inocência no olhar, mantínhamos a esperança, o frescor de ser humano. Inventávamos no vestir, no andar, no calçar e no dançar, mas não nos fakeávamos em tantas tinturas e maquiagens, cortes de cabelo mais que estranhos e modas esdrúxulas, acessórios diversos de metal, plástico ou silicone, inclusive com cirurgias abusivas e quimioterapias para mantê-las! Não havia tanta preocupação de ser diferente, pois sabíamos que cada um era um. E também sabíamos que éramos um conjunto único de pessoas, indivíduos lutando por uma só causa – o direito de viver, ser, se expressar e ser feliz! Jornais, revistas cheias de humor rasgado, proibidos pelo sistema, mas apoiado por todos nós – os oprimidos que não nos dividíamos em classes, cores, raças, credos, gêneros, marcas, rótulos nem nada – surgiam e fechavam quase que a cada mês, mas nos divertíamos com isso, pois viver livre é sempre muito mais divertido e nos faz crescer e aumentar nossa inteligência e capacidade de reflexão. Éramos uma única massa/povo com o braço erguido a expor a nossa força jovem, sem ranços nem preconceitos entre nós, manipulados pelo sistema, o mesmo que nos controla e determina.

Hoje, nesta liberdade insana, sem pé nem cabeça, nesta liberdade inventada por políticos, pelo populismo (pior ditadura que já existiu desde Roma do pão e circo) , pelo interesse capital, seja socialista, comunista ou liberal, não se pode mais dizer nada. O verbo/a linguagem foi interdito e vem sendo manipulado, deformado e punido com cancelamento/banimento social. Não se pode mais fazer nada que não seja visto, medido e avaliado por algoritmos e matemáticas loucas, ou fiscais de plantão numa microfísica controladora e denunciadora pior que as antigas candinhas que espreitavam as pessoas pelas frestas. Hoje, tudo é criado em última hora para moldar, massificar, unificar, controlar, vender e destruir o que passou como se pudéssemos estar no mundo sem alicerces. Não há espaço para a ironia, o humor, nem mesmo o sarcasmo sutil ou a sátira. Foram banidos os risinhos, o sorriso franco e até a gargalhada. Só vemos memes grotescos e programas de humor, ora escrachados pejado de palavrões e alusões sexuais, ora cheios de micagens e trejeitos inomináveis. Stand ups que são mais noticiários cheios de falsas críticas ou ironias, criticando o oficial e manipulando os fatos ou fazendo apologias de uma sexualidade desenfreada destruidora de valores e sensibilidades, às vezes, simples destruidores do que está posto e constitui nossa simples existência. O que não é óbvio, não é risível; o que não é baixo, massivo, grotesco não se divulga. E nos rotularam, dividiram como manada de corte e aceitamos as novas denominações que nos separam, nos discriminam, nos classificam como ratos de laboratório numa experiência infernal. Apoiam as tecnologias que viciam, que nos desconstroem como humanos e fazem apologias de casas inteligentes, robos, máquinas controladoras, IAs …

Estamos aceitando viver em compartimentos estanques e definitivos, porém sem convivência real. As pessoas já não gostam mais de si mesmas, nem por dentro nem por fora, nem de seus corpos; não basta trocar de roupa, querem trocar de corpos, amputar, mutilar, deformar, modificar à força a preços indizíveis e sem felicidade. Não apenas trocando de sexo ou gênero, mas deformando seus corpos como bonecos baseados em modelos e padrões absurdos da imaginação doentia que grassa em filmes, animações, HQs, etc.

E como num ringue louco, colocaram-nos a brigar, uns com os outros. Colocaram-nos em redes e incitaram o ódio entre nós, servido destilado em centenas de mililitros para absorvemos com as novas dietas sem glúten, sem lactose, sem gordura, sem açúcar, sem carne, sem bicho só para agora acrescentarem em nossas dietas transgênicos, híbridos, químicas (muita química!) e até insetos (com a desculpa que faltará comida no mundo). Dizem que os bois e as vacas são os únicos culpados pela chuva ácida e o efeito estufa que envolve a Terra e nos sufoca a todos, a ponto de não conseguirmos engolir o próximo, o vizinho, o outro, o diferente, esquecendo-nos de pensar que somos animais também, embora não ruminantes. Esquecemos nosso lugar na cadeia alimentar e diante de toda essa criação, esquecemos nosso lugar no mundo e no universo.

O café já acabou e até mesmo o simples ato de tomar café não é fácil, pois não nos servem mais café puro, todo ele misturado com outros grãos torrados para aumentar o lucro. Pelo menos o céu é o mesmo e o por do sol também, embora não sejam o mesmo pelo princípio heraclitiano de ver as coisas. E assim, eu mesmo não poderia escrever nem pensar nada diferente disso, porque sei que não sou a mesma, a cada dia mudando. Só penso que preciso ter certeza, ter consciência, de como estou mudando, em que direção e com que propósito de ser. E, com certa hesitação, não sei se concluo, todavia continuo pensando – de nada adianta dizer: assim caminha a humanidade, se nem vejo caminho, movimento nem tampouco humanidade!

O mundo realmente não é mais o mesmo, vivemos cerceados, buscando um lugar onde é possível a expressão real, seja ela não expressar nada, ficar neutro. Muita gente vai dizer que hoje é que temos expressão de verdade, liberdade, mas não. É uma pena ver a que ponto chegou a “humanidade”. Fatias, tribos, cada qual no seu quadrado, fazendo de verdade o que der na telha, muita preocupação com o próximo (#sqn – nem sequer com o próximo que é si mesmo). Qual o parâmetro? Que nada! Liberdade total! E por que a infelicidade continua, tantos ansiolíticos, suicídios? Caímos que nem patinho! Estamos presos, encarcerados. Que liberdade na minha infância e puberdade! Depois começou a prisão. Hoje percebo. Até o fim dos anos 80 ainda se sentia essa liberdade. Depois? E hoje? Viver em sociedade virou sinônimo de separação, solidão, violência. Ai de você se expuser sua opinião com relação a qualquer fatia social! Ai de você se for você mesmo! Como você não faz parte de uma tribo ou fatia social!? Meu deus! Que saudade da vida de antigamente!
Muito interessante o texto, essa reflexão de como anda esse tempo. Também me sinto assim, de mãos atadas, por vezes julgada e classificada. E sim, hoje não podemos dizer nada sem críticas vorazes em nosso encalço.
Parabéns por compartilhar.
Percebo que determinaram a idade “certa” para se ter opiniões válidas. E quando se tem mais de 55 anos, você é simplesmente excluída e até xingamentos recebe, dos mais leves “vai fazer tricô, tia!” a outros indizíveis. É a velha máxima da arte de ter razão sem ter razão (schopenauer), que infelizmente fez escola aqui e muitos discípulos: “quando você não puder mais argumentar, desestruture o seu adversário/oponente com xingamentos ou outras palavras que o abale emocionalmente.” É a regra hoje!
Bem colocado , como sempre, mestra. Diziam que não tínhamos liberdade, que era ditadura. E agora o que é ? temos liberdade? Podemos ser diferentes? Está muito pior que na ditadura. O humor já se foi, agora qualquer coisa é politicamente incorreta. As redes sociais só pioraram a situação, pior até que os caguetes , X-9 e etc, se fizerem uma imagem incorreta de ti, não há reflexão ou possibilidade de explicação. É malhação de judas na certa, a ponto de ferrar sua vida. Depois para desfazer o dano, já era , nem isso se consegue. Falta razão, falta sensibilidade, falta bom senso e falta muito auto-conhecimento. Só mesmo a educação, a boa e velha educação, sem mimimi, sem privilégios, sem minorias, para salvar alguma coisa. Se sabe faz a prova e sabe, se não sabe repete.