A Desconstrução do Eu e o Caminho da Liberdade: Diálogos entre Krishnamurti, Jung e Wilber

17 de maio de 2025 0 Por Cris Danois

Este artigo propõe uma leitura integrativa de cinco capítulos essenciais do livro A Primeira e Última Liberdade, de Jiddu Krishnamurti, a partir de interlocuções com a teoria junguiana da individuação e a psicologia transpessoal de Ken Wilber. Ao explorar os conceitos de “eu”, desejo, pensamento, mente e medo, o artigo investiga como essas dimensões estruturam o sofrimento humano e como sua compreensão pode abrir caminho para a liberdade interior. A proposta epistemológica aqui adotada é espiritual, mas fundamentada em autores com reconhecida influência acadêmica, buscando ampliar o entendimento da consciência como processo de integração e transcendência.

1. Introdução

Jiddu Krishnamurti (1895-1986) é uma das vozes mais radicais e originais da filosofia espiritual contemporânea. Em A Primeira e Última Liberdade, ele propõe um processo de autoconhecimento que rompe com sistemas, tradições e autoridades externas, afirmando que a verdadeira revolução é interior. Ao investigar a natureza do “eu”, do pensamento, do desejo, do medo e da mente, Krishnamurti oferece não um caminho, mas um espelho.

Neste artigo, propomos um diálogo entre seus principais conceitos e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961), particularmente os processos de individuação e circum-ambulação, assim como a visão holística e evolutiva de Ken Wilber (1949-), fundador da psicologia transpessoal integral.

2. O “Eu” como Ilusão Psicológica

“O ‘eu’ é uma série de memórias, e essas memórias criam o pensador” (p. 70)

Para Krishnamurti (2006), o “eu” é um conjunto de memórias, experiências e desejos acumulados. Ele não possui existência autônoma, sendo mantido por mecanismos de repetição e comparação. Na psicologia junguiana, esse “eu” corresponde ao ego, o centro da consciência, que não deve ser confundido com o Self, totalidade psíquica que inclui o inconsciente. Para Jung (2012), o processo de individuação exige que o ego reconheça seus limites e se submeta ao Self. A dissolução do ego, para Krishnamurti, não se dá por esforço, mas por percepção direta: ver o “eu” como um produto do pensamento é já começar a se libertar.

O que é o “eu”?

Krishnamurti começa desnudando a estrutura do “eu”. Ele o revela não como uma essência sólida ou identidade autêntica, mas como uma construção psicológica feita de lembranças, experiências, identificações e desejos. O “eu” é, portanto, uma acumulação — uma continuidade do passado projetada no presente e no futuro. E é essa construção que gera conflito, pois está sempre buscando segurança, permanência, sucesso, controle e reconhecimento. Contudo, Krishnamurti não propõe negar o “eu” de forma reativa ou intelectual. Ele nos convida a ver esse “eu” em ação, em suas múltiplas formas — o orgulho, a inveja, a ambição, o medo — sem julgamento, sem fuga. O simples observar, com atenção total, é o começo da dissolução.

3. Desejo e Apego como Obstáculos

“A imagem criada pelo pensamento torna-se desejo” (2006, p. 120)

Krishnamurti argumenta que o desejo surge do contato sensorial que, por meio da imagem, cria o anseio pela repetição da experiência. O problema não é o sentir, mas a imagem e o apego criados pelo pensamento. Neste capítulo sobre o desejo, Krishnamurti mergulha em um dos motores centrais do “eu”: a ânsia. Desejar não é apenas querer algo superficialmente; é um impulso que nasce da percepção, do contato e da sensação — e que rapidamente é apropriado pela imagem do “eu”. O desejo cria resistência, gera comparação, alimenta o tempo psicológico.

Ele observa que o desejo em si não é o problema, mas sim o apego à sua realização e a identificação com o que se deseja. Essa identificação reforça o “eu” como alguém que possui, quer, sofre ou tem sucesso. Ver o desejo surgindo e desaparecer sem se tornar escravo dele é um ato de inteligência e liberdade.

Wilber (2000) aponta que o desejo, nos estágios inferiores da consciência, está centrado na carência, e que a transcendência se dá quando o sujeito desloca seu centro de identidade para além do ego. Assim como Krishnamurti, Wilber sustenta que o apego à experiência e ao prazer perpetua a ilusão do “eu”.

4. Pensador e Pensamento: A Fissura Inexistente

“Não há divisão real entre o pensador e o pensamento” (2006, p. 130)

Krishnamurti desmantela a distinção entre pensador e pensamento, afirmando que o pensador é apenas mais um pensamento… Essa cisão ilusória sustenta o controle e a continuidade do ego. Krishnamurti destrincha uma das mais sutis armadilhas da mente: a separação entre o pensador e o pensamento. Habitualmente, assumimos que há um “eu” que pensa, que decide, que escolhe entre pensamentos. Mas ele mostra que o pensador é o pensamento; são inseparáveis. Essa divisão ilusória é fonte de controle, conflito e culpa — mecanismos que mantêm o ego em movimento.

Quando essa cisão é percebida, o pensamento pode ser visto como uma resposta condicionada, um reflexo da memória. E é apenas nesse ver que há possibilidade de silêncio interior — um estado onde a mente não está ocupada consigo mesma.

Na perspectiva junguiana, isso lembra a inflagem do ego, que se acredita fonte da totalidade. O processo de circum-ambulação, descrito por Jung (2013), é o movimento da consciência em torno do Self, integrando aspectos antes inconscientes, inclusive a ilusão de centralidade do ego. Ao ver que não há pensador separado do pensamento, rompe-se a dicotomia que sustenta o controle mental.

5. A Mente que liberta e a Mente que prende

“Uma mente que busca não é livre. A mente que está em silêncio é criativa” (2006, p. 190).

Para Krishnamurti, a mente condicionada repete, compara e deseja. A mente livre, por outro lado, é silenciosa e observadora. A mente, em seu aspecto essencial, tem a função de perceber o real. No entanto, quando está presa em mecanismos de segurança, hábito, análise e repetição, ela perde sua verdadeira capacidade. Torna-se fragmentada, repetitiva, mecânica.

Krishnamurti propõe uma mente livre — não livre para fazer o que quiser, mas livre de condicionamentos, de conclusões, de ideologias. Essa mente não é produto do tempo, mas nasce no instante em que há total atenção. Ela é criativa, sensível, profundamente inteligente. Já Wilber (2006) define a mente como um dos muitos corpos da consciência. Quando a mente é vista como instrumento, ela se abre à transcendência. A verdadeira função da mente é permitir a consciência testemunhal — um ver sem julgamento, semelhante ao que Krishnamurti chama de “observação pura”.

6. O Medo como Estrutura

“A raiz do medo é o tempo e o pensamento” (2006, p. 156)

O medo, para Krishnamurti, é produto do tempo psicológico: da memória que projeta um futuro a evitar. Esse elemento será questionado mais tarde num livro do final da vida de Krishnamurti junto a um dos nomes mais importantes do pensamento ocidental, o Físico David Bohm, americano, teórico da mecânica quântica.

O enfrentamento do medo se dá apenas quando o vemos em sua totalidade, sem tentar fugir ou racionalizar. Neste capítulo sobre o medo, Krishnamurti mostra como ele é uma das forças mais paralisantes da mente. O medo nasce do tempo — do pensamento projetando o que poderá acontecer, com base no que já aconteceu. Ele é alimentado pela busca constante por segurança, tanto física quanto psicológica.

Enquanto houver desejo de segurança, haverá medo. E enquanto houver medo, não haverá liberdade. O medo não pode ser combatido, nem superado por técnicas ou fugas. Ele só pode ser compreendido por meio da observação direta, sem o movimento do pensamento tentando modificá-lo.

Jung (2011) entende o medo como expressão da sombra não integrada. O contato com o inconsciente provoca terror, pois o ego teme dissolver-se. Para Wilber, o medo também é o guardião da porta entre os níveis de consciência: é preciso atravessá-lo para crescer espiritualmente. A proposta de Krishnamurti é radical: olhar para o medo sem nomeá-lo, sem querer mudá-lo, e nesse olhar, dissolver sua raiz.

7. Considerações Finais

A leitura desses capítulos de A Primeira e Última Liberdade revela um mapa para a libertação interior. Não uma libertação como conquista, mas como desapego radical ao que somos condicionados a ser. Krishnamurti não oferece respostas, mas questionamentos tão incisivos que, se levados a sério, dissolvem os alicerces do “eu”.

Ver o “eu” como uma estrutura ilusória, compreender o desejo sem se identificar com ele, perceber que o pensador é o pensamento, libertar a mente de seus condicionamentos e olhar o medo nos olhos — esse é o caminho não-caminho que ele nos aponta. A verdadeira liberdade não está no futuro, nem fora de nós, mas no exato instante em que vemos, com clareza e sem escolha, a realidade como ela é.

A proposta de Krishnamurti converge com Jung e Wilber ao afirmar que a liberdade não é conquista do ego, mas revelação do real através da consciência plena. A individuação (Jung), a integração evolutiva dos níveis de consciência (Wilber) e a observação pura (Krishnamurti) são três caminhos que, embora distintos, convergem para a mesma experiência: a superação da ilusão do “eu” e o nascimento de uma presença livre.

Referências

JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

JUNG, Carl Gustav. A Dinâmica do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2013.

KRISHNAMURTI, Jiddu. A Primeira e Última Liberdade. São Paulo: Cultrix, 2006.

WILBER, Ken. Uma Breve história de Tudo. São Paulo: Cultrix, 2000.

WILBER, Ken. Psicologia Integral. São Paulo: Cultrix, 2006.