Entre as palavras e as coisas, o uso – uma ação nem sempre sensata.

7 de agosto de 2024 0 Por Cris Danois

Atualmente, virou lugar comum (intelectuais, pensadores, “booktubers” ou “influencers”) dizer e apontar que as ideias de Foucault e Derrida influenciaram as atuais ideologias pós modernas. É verdade, que as ideias de Michel Foucault e Jacques Derrida tiveram um impacto significativo na formação das ideologias pós-modernas contemporâneas, especialmente no campo da filosofia, teoria crítica, estudos culturais e literatura. Mas olhemos de perto alguns dos principais conceitos e influências de cada um.

Michel Foucault em a Arqueologia do Saber1 propôs que o conhecimento é construído historicamente e que cada época possui suas próprias regras de formação discursiva, chamadas de: episteme. Ele analisou como diferentes períodos históricos têm modos distintos de construir e legitimar o conhecimento. Em Microfísica do Poder2, inspirado por Nietzsche, Foucault desenvolveu a genealogia como método para estudar a história dos sistemas de poder e como eles moldam e controlam a sociedade. Ele argumentou que o poder não é simplesmente repressor, mas produtivo e onipresente, manifestando-se em todas as relações sociais. Foucault introduziu, ainda, o conceito de biopoder para descrever a maneira pela qual os governos modernos, inspirados no antigo poder religioso dentro da cultura ocidental, particularmente a europeia, regulam a vida das populações. Ele explorou como o poder se manifesta na gestão da saúde, da sexualidade e dos corpos dos indivíduos. Em Vigiar e Punir3, seu famoso estudo sobre o sistema penal, Foucault analisou a transição do poder soberano para o poder disciplinar. Ele mostrou como as instituições modernas (escolas, prisões, hospitais) utilizam técnicas de vigilância e disciplina para controlar os indivíduos.

Jacques Derrida, por sua vez, centrou-se num método crítico criado a partir do estruturalismo de Saussure. O termo teve origem no livro Curso de lingusitica geral4 de Ferdinand de Saussure de 1916, que se propunha a abordar qualquer língua como um sistema no qual cada um dos elementos só pode ser definido pelas relações de equivalência ou de oposição que mantém com os demais elementos. Esse conjunto de relações forma a estrutura.

Esta teoria é uma abordagem que veio a se tornar um dos métodos mais extensamente utilizados para analisar a língua, a cultura, a filosofia da matemática e a sociedade na segunda metade do século XX. Entretanto, “estruturalismo” não se refere a uma “escola” claramente definida de autores, embora o trabalho de Ferdinand de Saussure seja geralmente considerado um ponto de partida; mas, Em A escritura e a diferença5, Derrida passa também por Husserl, Freud, Heidegger, Foucault, Lévinas, Bataille e Lévi-Strauss. O estruturalismo é mais bem visto como uma abordagem abrangente com muitas variações diferentes. Como em qualquer movimento cultural, as influências e os desenvolvimentos são complexos.

Derrida desenvolveu a desconstrução como uma forma de análise crítica que visa revelar e desmantelar as hierarquias e binarismos presentes nos textos filosóficos e literários. Ele mostrou como os textos sempre contêm contradições e ambiguidades que desestabilizam os significados pretendidos. A ideia de Derrida foi a de revelar o maniqueísmo presente nas filosofias e disciplinas derivadas que sempre se pautaram por um bom versus um mau, um certo versus um errado, sem dar conta das múltiplas possibilidades e diversidades de uma civilização em expansão.

Derrida introduziu, ainda, o conceito de différance, que é um neologismo que sugere tanto a diferença (enquanto coisa desigual) quanto o adiamento (diferimento). Ele argumentou que o significado é sempre diferido, nunca totalmente presente, e que a linguagem está sempre em um estado de diferença, necessitando do deferimento (aprovação ou concessão do poder concedido a uma classe). Derrida criticou a tradição ocidental de privilegiar a fala sobre a escrita (logocentrismo), argumentando que a escrita é fundamental para a constituição do significado e que não pode ser reduzida a uma mera representação da fala.

Tendo em conta estas teorias, superficialmente expostas aqui, podemos detectar suas influências nas ideologias pós-modernas, tendo em conta que a tradução dessas teorias para a língua inglesa sofreu de um possível reducionismo, tanto quanto a repetição acadêmica destes autores extrapolou sua divulgação num primeiro momento.

As ideias de Foucault e Derrida influenciaram profundamente as ideologias pós-modernas, através desse viés crítico e descontextualizado, e, enquanto eles enfatizam a crítica às metanarrativas, a desconfiança em relação à objetividade e universalidade, e a valorização da pluralidade e diferença, outros se aproveitam do mesmo discurso para usarem sem critério epistemológico e cientifico, de forma deliberadamente anti-intelectualista a ponto de gerar as pseudo teorias que estão em vigor hoje, especialmente porque interessa economicamente às mídias e ao sistema financeiro de oposição.

Algumas dessas influências incluem estes tópicos que passo a expor abaixo:

. a pós-modernidade questiona as grandes narrativas totalizantes (como o progresso, a razão e a emancipação) que pretendem explicar a totalidade da experiência humana.

. os estudos de identidade, gênero, raça e sexualidade, revelando como essas categorias são construções sociais contingentes (sem considerar, no entanto, que nenhum dos dois filósofos franceses citados acima propuseram explicitamente isso).

. uma análise do poder, segundo uma possível leitura de Foucault, que influenciou movimentos sociais e teóricos que focam na resistência como formas locais e difusas de poder, em vez de buscar a revolução total.

. ênfase na diferença e na multiplicidade de perspectivas, defendida por Derrida, está no cerne do pensamento pós-moderno, que valoriza a diversidade cultural e epistemológica.

Em suma, as contribuições de Foucault e Derrida podem fornecer ferramentas críticas para analisar e questionar as estruturas de poder e conhecimento, promovendo uma visão do mundo que acolhe a pluralidade, a diferença e a desconstrução de verdades absolutas. De certa forma, promove o progresso e a evolução da sociedade como um todo no sentido de melhor acolher a diversidade crescente da humanidade.

Entretanto, Michel Foucault e Jacques Derrida não abordam diretamente a desconstrução da identidade sexual biológica das pessoas da maneira que isso é discutido em algumas correntes contemporâneas dos estudos de gênero. No entanto, suas ideias mal interpretadas ou mal lidas, fornecem a base teórica que para muitos teóricos estruturaram suas ideias e passaram a explorar a construção social da identidade, incluindo a identidade sexual e de gênero, embora não coubesse de maneira cabal o questionamento científico biológico, visto que não se trata de uma narrativa, mas sim de uma constatação factual.

Michel Foucault, em sua História da Sexualidade6, especialmente no primeiro volume (“A Vontade de Saber”), Foucault argumenta que a sexualidade (e não o gênero biológico) não é uma verdade natural e imutável, mas uma construção histórica e social. Ele explora como diferentes sociedades e períodos históricos moldaram e controlaram as práticas sexuais e as identidades sexuais. Foucault introduz o conceito de biopoder, que se refere às práticas de poder que se concentram na gestão da vida e dos corpos das populações. Ele mostra como as instituições modernas regulam a sexualidade e os corpos, influenciando a maneira como as pessoas entendem e vivenciam suas identidades sexuais.

Sob a égide do permitido e do proibido, a compulsão tanto quanto a repressão são manipuladas num exercício de poder para enfraquecimento dos seres que não se conformam com o sistema como algo pronto, estanque imposto de cima para baixo, à revelia de qualquer questionamento. Foucault também não afirma explicitamente que a identidade sexual biológica é uma construção, mas sua análise das práticas discursivas e institucionais que regulam a sexualidade pode abrir um espaço para questionar a naturalidade dessas categorias.

Derrida não trata diretamente da identidade sexual biológica, mas sua metodologia de desconstrução pode ser aplicada a essas questões. A desconstrução questiona as dicotomias binárias que pretendem descrever estereótipos e papéis sociais específicos (como masculino/feminino) e mostra como essas categorias são instáveis e permeadas por ambiguidades e traços diferenciados de comportamento e visão de mundo.

Explico: um homem não precisa ser necessariamente rude, brutal, sem sensibilidade, forte com gostos iguais considerados masculinos bem como mulheres não precisam corresponder aos ideais subjetivos de sensibilidade, maternidade, delicadeza entre outros para serem considerados o que são biologicamente. Um homem pode gostar de cozinhar, bordar, pintar ou até mesmo costurar sem precisar negar sua biologia, bem como uma mulher que é inteligente sim (conceito não aceito sobre o feminino até o início do século XX), e pode se dedicar a tarefas e atividades ditas masculinas, particularmente, ciências em geral, e as que exijam força. O que não se percebe aqui é que o ser é biologicamente determinado, mas as atuações sociais e culturais não possuem essa determinação, são neutras por excelência. Derrida critica a tradição ocidental de buscar significados fixos e definitivos nesta expressão humana. Aplicado ao gênero e à sexualidade, isso sugere que não há uma essência fixa nas categorias de gênero e que essas identidades são construídas e perpetuadas através da linguagem e dos discursos sociais.

Os trabalhos de Foucault e Derrida influenciaram diretamente teóricos como Judith Butler, que é uma das figuras principais na desconstrução das identidades de gênero e sexualidade. Ela sim, usou as teorias segundo sua idiossincrasia. Butler se utiliza da ideia de performatividade para argumentar que gênero não é algo que se é, negando a biologia simples, mas algo que se faz repetidamente através de atos e discursos, confundindo gênero, sexualidade, identidade e performance existencial e social.

Em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade7 Butler argumenta que gênero é performativo, ou seja, é uma série de atos e comportamentos que produzem a aparência de uma identidade estável e natural. Ela se baseia nas interpretações pessoais das ideias de Foucault sobre poder e discurso, bem como na desconstrução de Derrida, para mostrar como gênero e sexo são construções sociais, misturando dois conceitos diferentes. Neste livro, Butler – fundadora da Teoria Queer, afirma que não é possível que exista apenas uma identidade: ela deveria ser pensada no plural, e não no singular. Ou ainda, não é possível que haja a libertação da mulher, a menos que primeiro se subverta a identidade de mulher.

Com essa formulação radical, Judith Butler interroga também a categoria de heterossexualidade, de forma a relançar a oposição sexo e gênero em novas coordenadas e em outras linhas de força, nas quais podemos nos aprofundar em perguntas como: o que é ser homem e o que é ser mulher? o que faz um homem ser homem e o que faz de uma mulher uma mulher? Questões cuja ampliação contemplaria a multiplicidade de sexualidades, tão visíveis na contemporaneidade. No entanto, ela deu origem ao famoso código de barras vigente hoje, mais conhecido como a “sopa de letrinhas” para tentar definir gênero como sexualidade e vice versa, criando mais confusão na sociedade do que consenso e inclusão.

Infelizmente, ela não viu que a libertação das mulheres não se daria de graça e fácil pelo poder misógino constituído milenarmente, mas pela afirmação tranquila de seu papel múltiplo como mulher numa sociedade crescente em complexidades, papéis e narrativas, sem precisar mutilar o corpo ou a mente. Hoje, ao contrário, a mulher com todas as suas contradições está sendo massacrada, exterminada como tal, pois o poder masculino patriarcal assim entende essa revolução sexual.

Portanto, enquanto Foucault e Derrida não discutem explicitamente a desconstrução da identidade sexual biológica, pensam os mais novos e apressados, que suas teorias fornecem a base para essa linha de pensamento, mostrando como as identidades são construídas através de práticas discursivas e institucionais.

Ainda não consigo ver a consequência direta, mas se tenho um método de desconstrução de um sistema/discurso ele é neutro. Posso, como ser pensante e autônomo, desconstruir o que for preciso para um ajuste teórico posterior. Caso contrário, não poderemos promover ou desfrutar de uma evolução das ideias e viveremos fadados à mesmice na existência. Entretanto, percebo que o ser humano pode se aproveitar de qualquer discurso para fazer o bem ou o mal, para justificar até mesmo o injustificável, como diz Baudrillard em A transparência do mal8 – “o princípio do mal não é moral: é um princípio de desequilíbrio e de vertigem, princípio de complexidade e estranheza, de sedução, de incompatibilidade.”

E acrescento: o mal não tem consistência concreta; sua origem abstrata pertence à mente humana e como tal é, vive e revive de narrativas. Podemos constatar isso no Direito, que apesar do Código escrito, pode fazer defesa de crimes confessos, ou mesmo um juiz pode manter encarcerado um cidadão sem julgamento ou acusação explícita apenas por manipular o discurso vigente. Logo, é loucura imputar culpa ou acusar teóricos, como o discurso conservador e tradicional anacrônico quer, sem considerar o contexto que vivenciaram estes dois filósofos entre duas grandes guerras e que sofreram, como também viram sofrer pessoas comuns e inocentes, com discursos totalitários destrutivos e mortais.

Hoje instaura-se a insensatez, a estupidez derivada da desrazão determinando o caos que está ocorrendo mundialmente que nem a biologia, a geografia, a física ou a matemática escapam do vírus woke. Proponho aqui, neste breve artigo defender a neutralidade das ferramentas teóricas por se tratarem de narrativas/discursos que não deveriam ser colocados em práticas muito menos impostos sem uma longa discussão com a população em geral, com o risco de se tornar uma nova forma de autoritarismo ditatorial imposto de cima para baixo à revelia das consciências.

A desconstrução de Derrida, Saussure ou Foucault, entre outros, é uma ferramenta neutra. Derrida não prescreve exatamente como ela deve ser usada, apenas oferece um método para revelar e questionar as suposições subjacentes nos textos e discursos. Isso permite que seja aplicada em diversas áreas, incluindo literatura, filosofia, direito, e estudos de gênero. Foucault denuncia perversidades e abusos em suas “histórias” (das clínicas9, da loucura10e da Sexualidade6), bem como em Vigiar e Punir3 que são inegáveis. Sem Saussure, muitos discursos seriam ilegíveis e desconsiderados pela antiga academia.

Ainda que Saussure fosse, assim como seus contemporâneos, interessado em linguística histórica, desenvolveu seu ‘Curso’ como uma teoria mais geral de semiótica, privilegiando signos. Essa abordagem se concentrava em examinar como os elementos da linguagem se relacionavam no presente. Assim ele focou seus estudos não no uso da linguagem (o falar), mas no sistema subjacente de linguagem (idioma), do qual qualquer expressão particular era manifestação da mesma. Enfim, ele mostrou que sinais linguísticos eram compostos por duas partes: um ‘significante'(som) e um ‘significado’ (o conceito). E isso era totalmente diferente das abordagens anteriores à linguagem, que se focavam no relacionamento entre palavras e as coisas que elas denominavam no mundo. Resulta daí, também, o estudo de Foucault em A palavra e as coisas11 que já mencionamos acima em sua arqueologia do saber. A abordagem genealógica de Foucault também pode ser vista como uma ferramenta neutra. Ele analisa como os discursos e práticas sociais se desenvolvem ao longo do tempo, sem necessariamente impor um julgamento moral sobre esses processos. Isso permite uma compreensão crítica das estruturas de poder e conhecimento.

Agora, o uso das teorias, sua interpretação e aplicação, depende de uma série de inferências – causas, comprometimentos, isenções ou não – para que seja produtivo para todos. As teorias de Foucault, Derrida, Saussure e outros que não citei aqui, mas que compartilham da mesma ânsia de desconstrução, podem ser usadas para diversas finalidades, e a maneira como são interpretadas e aplicadas depende dos objetivos e contextos específicos de quem as utiliza. Isso pode levar a uma variedade de interpretações, algumas das quais podem ser vistas como extremas ou controversas.

A responsabilidade dos teóricos é inquestionável, mas a responsabilidade das políticas socioeconômicas e da mídia é ainda maior. É importante reconhecer que os teóricos como Foucault e Derrida estavam respondendo aos contextos históricos e intelectuais de suas épocas, muitas vezes em reação a experiências de guerra, totalitarismo e opressão. Eles não são diretamente responsáveis por todas as interpretações e usos posteriores de suas ideias.

No contexto contemporâneo, as críticas ao movimento “woke” e à politização do conhecimento refletem preocupações sobre como certos discursos críticos podem ser usados para justificar posições que alguns consideram extremas ou ilógicas, incluindo a rejeição de verdades científicas estabelecidas. Esse uso pode ser visto como um desvio das intenções originais dos teóricos.

Como explicitei acima, qualquer discurso ou teoria pode ser utilizado para justificar tanto o bem quanto o mal. Advogados de defesa, por exemplo, utilizam princípios jurídicos para defender seus clientes, independentemente da moralidade dos crimes cometidos. Da mesma forma, as teorias de Foucault, Derrida, Saussure e outros podem ser usadas para questionar estruturas opressivas, mas também podem ser distorcidas para fins questionáveis.

Conclusão

Foucault e Derrida oferecem ferramentas poderosas para a análise crítica das estruturas de poder e dos discursos. A maneira como essas ferramentas são usadas depende dos objetivos e contextos específicos de quem as aplica. É fundamental lembrar que as teorias são frequentemente reinterpretadas e recontextualizadas ao longo do tempo, e que os teóricos não são responsáveis por todos os usos (ou abusos) posteriores de suas ideias. Das críticas contemporâneas às aplicações dessas teorias, como no caso do movimento “woke”, devem ser entendidas como parte de um diálogo contínuo sobre o uso e a interpretação do conhecimento crítico, e não apressadamente impostas, com o risco de destruir mentalmente a sociedade.

Percebo isso com relação também à tecnologia ou a evolução desta na criação de IAs e outros artefatos. Ainda mal interpretadas por uma grande parte da humanidade, como se não estivéssemos dialogando com a própria humanidade através destes mecanismos e o fantasma de que seremos superados ou destruídos pelas IAs.  As propagandas iniciais eram umas para venderem a ideia, hoje já são outras e ameaçam o desenvolvimento saudável dessas tecnologias e ainda misturam todo esse contexto a esse panorama importante e crescente para a civilização humana e terráquea como um todo.